quarta-feira, 28 de maio de 2008

Escarpa - Rascunho.net

Enfiamos esta Escarpa pelos ouvidos adentro, a ver se nos massaja os ombros, num final de tarde que teima em perecer como todos os outros. E a verdade é que, de orelhas frias, de corpo pálido, vai o nariz pondo-se a jeito de apanhar um muro, duas casas, três muros, uma criança de bicicleta. Vamos neste ouvir alienado, desconfortavelmente sentados à boca do metro, nus de inocências, a querer sair e a ficar, a meter nos bolsos os silêncios literários, os silêncios desolados, as gritarias desconcertantes.

É o que nos permitem: andar alienados de música nos ouvidos, a não ouvir e deixar que o mundo lhe caia em cima, coitada, que não leva culpa disto, que se faz desabrochar nas noites desconfiadas do Porto cinzento e morto de coração e de alegria. Como tudo. Vamos de ouvidos metidos no bolso. E estes Mandrágora fazem de tudo para criar ambiguidades à passeata desonesta que levamos com as calçadas e o cimento e os escapes. A causa é muito simples, não precisamos de grandes viagens, está mesmo aqui: é a ruralidade que eles nos plantam nas mãos. E nós sem ruralidade nenhuma – não estão vocês a ver isto?

E já não temos forças e vamos, seja para onde for. Ruralidade? Pois, que sim. Estamos. Quantos caminhos nos ficam por galgar neste andar de um lado para o outro e voltar a fazer o mesmo? Talvez eles o saibam e talvez seja neles intrínseca a necessidade de ultrapassar a urbanidade do rock e até do jazz, para que se inebriem com as raízes do que fomos e somos e que, sem eles, não voltaremos a ser. O sol, que hoje não nos passou pelas costas a aquecer o corpo, está aqui. E é toda uma espécie de futuro. Que importa se ninguém diz nada? Que importa se ouvimos uma sanfona e nos pomos para aqui a falar de dias vindouros, de quem não conhecemos cor nem rosto.

O pouco que sabemos é que estes Mandrágora partilham uma mesma cidade connosco – o Porto. Disseram-nos, uma vez, que as coisas não se resolvem a existir e pronto. É preciso pôr o pé no processo. (Ou no progresso, ou lá como se diz na língua daquele homem que ali vai, sozinho, que ainda leva o patrão a ranger-lhe os dentes e que não chora porque sabe que não deve chorar. Só por isso.) Há muito que tomámos consciência de que existe uma afirmação no plano musical, mas só com Escarpa – e apenas hoje – nos assola uma ideia oxigenada dos sons que eles nos pintam com as coisas muito práticas, como viver e cortar duas laranjas.


Filipa Santos (flautas, saxofone e gaita-de-foles), Ricardo de Noronha (bateria e percussões), Pedro Viana (guitarra clássica), João Serrador (baixo) e Sérgio Calisto (guitarra de 12 cordas, violoncelo, nyquelarpa, moraharpa e bouzouki) são os Mandrágora (na foto acima, de Jorge Casais). E são capazes de, ao segundo disco, ter uma confirmação quase mágica das esperanças que lhes depositámos no colo por alturas da estreia homónima em 2005 (ed. Zounds) e do Prémio Carlos Paredes em 2006. Mas, agora, a conversa é outra, não se faz de concursos de popularidade e de sim, senhor, estes miúdos novos fazem isto muito bem. Isso já passou. Estamos num novo plano. Um plano que pode ser duro e ingrato – por falta de visibilidade ou de reconhecimento continuado.

Fica-nos uma ideia muito forte deste novo conjunto de composições e de liberdades mestiças: os Mandrágora não andam a brincar aos discos. Sem lhes tirar o mérito devido – o patamar de exigência já se tornou tão baixo, que isto até nos surpreende. Ou talvez devêssemos olhar melhor para o catálogo da Hepta Trad, responsável pela edição deste disco, e perceber que não estamos sozinhos.Sítio Oficial MySpace

Hugo Torres, 2008

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